CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES - Na origem de um conceito


CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES

Na origem de um conceito

A ideia de choque de civilizações, frequentemente retomada para explicar os conflitos entre ocidente e oriente, vê os mulçumanos como uma cultura petrificada.       Alain Gresh - (01/09/2004)

O choque de civilizações é visto como aspecto importante das relações internacionais modernas

“A crise no Oriente Médio (...) não teve origem num conflito entre Estados, mas num choque de civilizações.” Ainda em 1964, um professor universitário britânico pouco conhecido lançou a fórmula que ficaria famosa. Incontestavelmente, Bernard Lewis foi um precursor. Instalado nos Estados Unidos a partir de 1974 e especialista em assuntos sobre a Turquia, ele também é um ator político e não o disfarça. Bastante próximo a Paul Wolfowitz e aos neoconservadores do governo Bush, defende a política israelense, assim como a guerra contra o Iraque. “Descoberto” pelo grande público após o 11 de setembro de 2001, ele escreveu dois ensaios bastante tendenciosos, sob um pano de fundo “científico” – O que aconteceu? O islã, o Ocidente e a modernidade e O islã em crise – que foram muito bem recebidos pela crítica. Até se esqueceram de relembrar que ele continua negando o genocídio armênio...
Passada despercebida durante a década de 60, a fórmula foi relançada por ele vinte e cinco anos depois na forma de um artigo, “The Roots of Muslim Rage” (As raízes da cólera muçulmana). Ali, ele descreve o estado de espírito do mundo muçulmano e conclui: “Isto nada mais é do que um choque de civilizações, uma reação talvez irracional, mas seguramente histórica, de um antigo adversário contra nossa herança judeu-cristã, nosso presente secular e a expansão mundial de ambos.” “Eu penso”, dizia ele em 1995, “que a maioria entre nós concordaria em dizer – e alguns já o fizeram – que o choque de civilizações é um aspecto importante das relações internacionais modernas, embora poucos, entre nós, chegassem ao ponto de dizer – como alguns já fizeram – que as civilizações têm políticas externas e formam alianças. 

Visão reducionista

Os mulçumanos rejeitam a liberdade e a democracia, segundo a tese concebida por Bernard Lewis

A visão de um “choque de civilizações”, contrapondo duas entidades claramente definidas, o “islã” e o “Ocidente” (ou a “civilização judeo-cristã”), está no centro do pensamento de Bernard Lewis, um pensamento essencialista que restringe os muçulmanos a uma cultura petrificada e eterna. “Esse ódio” insiste ele, “vai além da hostilidade em relação a alguns interesses ou ações específicas, ou mesmo em relação a determinados países, tornando-se a rejeição da civilização ocidental enquanto tal, não pelo que ela possa fazer, mas pelo que ela é e pelos princípios e valores que pratica e professa.” Os iranianos não se revoltaram contra a ditadura do Xá imposta por um golpe de Estado fomentado pela CIA, em 1953; os palestinos não lutam contra uma invasão interminável; e se os árabes odeiam os Estados Unidos, não é porque o governo deste país apóia Ariel Sharon ou porque invadiu o Iraque. Na realidade, o que os muçulmanos rejeitam é a liberdade e a democracia. Como seria possível compreender os conflitos do Kosovo ou da Etiópia-Eritréia? Pela recusa, por parte dos muçulmanos, em serem governados por infiéis, explica Bernard Lewis.
Foi em 1993 que Samuel Huntington retomou a fórmula do “choque de civilizações” num célebre artigo que escreveu para a revista Foreign Affairs. Embora verbalmente rejeitado na França, o conceito se instalaria, pouco a pouco, nas consciências. Quando, em dezembro de 2003, em Túnis, o presidente Jacques Chirac mencionou o termo “agressão” ao se referir ao uso do véu islâmico, a jornalista Elisabeth Schemla comemorou: “Pela primeira vez, Jacques Chirac reconhece que a França não é poupada do choque de civilizações.”
“Sem exagerar sua importância”, escreveu Emmanuel Brenner num panfleto intitulado França, cuida para que não percas tua alma... (France, prends garde de perdre ton âme…), “é preciso levar em consideração ações culturais que explicitam conflitos entre concepções do mundo distintas, e até antagônicas. (...) Essa dimensão cultural está ausente em inúmeros observadores que deixam de levar em conta os antecedentes históricos que influenciam nosso inconsciente. Antecedentes cuja natureza, por muito tempo conflituosa, vem à tona com as atuais questões de identidade. Basta lembrar as cruzadas e o confronto entre as duas margens do Mediterrâneo, basta lembrar o avanço do islã no sudeste da Europa, chegando às portas de Viena no século XVII, assim como basta lembrar o tempo do império turco, temido e execrado e, em seguida, o tempo da colonização, com sua procissão de violência, e por fim o da descolonização, que muitas vezes foi sangrenta. Esse enfrentamento, antigo e recorrente, está sedimentado na consciência dos povos.” E é por isso, conclui Brenner, que uma parcela de jovens franceses originários do Magreb é “culturalmente” antissemita... De Maomé ao cerco de Viena pelos otomanos, da descolonização ao islamismo, do islamismo à al-Qaida, do véu islâmico ao antissemitismo dos jovens magrebinos, fecha-se a roda do círculo, repete-se a história. E viva os sarracenos!
(Trad.: Jô Amado)

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